terça-feira, maio 22, 2007

Retalhos do dia...

AS e eu

AS é uma rapariga do 9º. Ano, inteligente, com excelente verbalização, mas muito revoltada (ainda não sei porquê) contra a escola e os adultos que a povoam.
Um dia, quando fui fazer uma aula de substituição à sua turma, disse-me que os professores não gostavam de dar aulas de substituição e que ainda não tinha encontrado um professor que gostasse da sua profissão.
Encarei-a bem e perguntei-lhe:
- Que sinais vês em mim que te permitam concluir que eu não gosto de fazer aulas de substituição?
Olhou para mim, hesitou, tornou a olhar e respondeu:
- Para falar verdade, a professora parece-me diferente.
-“Diferente”?!? De que modo? O que queres dizer?
- Não sei…
- Também te parece que não gosto de ser professora?!?
- … Não…
- Eventualmente, quando dizes que ainda não conheceste nenhum professor que goste da profissão, não terás prestado bem atenção aos professores que tiveste, não os olhaste com olhos de ver…
- Talvez…
E continuámos a nossa argumentação.
Depois disso, quando me encontra, cumprimenta-me com afabilidade, mas encontra sempre um motivo para dizer mal da Escola, dos professores ou de algum funcionário.
Na sexta-feira passada estava particularmente verrinosa.
Enquanto a funcionária do bloco e eu comentávamos os acontecimentos da manhã, chegou-se a nós, entrou na conversa e, deliberadamente, humilhou, vexou, magoou a funcionária.
No fim-de-semana, dei por mim a pensar no caso e resolvi que a coisa não haveria de ficar por ali. Deixar passar um episódio em que uma jovem, à revelia de todos os valores que lhe são transmitidos, manifesta um preconceito tão acentuado pelas pessoas que têm menos instrução ( a ideia base do seu discurso era que quem não tem instrução não merece respeito) definitivamente não me parecia bem, pelo que entendi que haveria de ter uma conversa com ela, de modo a que a fizesse reflectir sobre o acontecimento. Não sendo minha aluna, não deixa de ser uma jovem em crescimento.
Na segunda-feira, apanhei-a mesmo ao fim do turno da manhã e desafiei-a sobre o assunto. Para ali estivemos a conversar um bom bocado, com ela a procurar resistir, num primeiro momento, a analisar os seus actos, o significado deles, a natureza das ideias que os informaram, as possíveis acções subsequentes.
A nossa conversa incidiu sobre deveres, direitos, o exercício da democracia, o respeito pelo outro, formas de melhorarmos e de crescermos individual e socialmente, o papel da humildade nesse processo.
Coloquei-lhe um desafio - um desafio de crescer, ser mais crítica, mais reflexiva, mais consciente de si e dos outros - acordámos, ao fim de uma negociação em que as suas resistências foram cedendo, devagar, como quem descasca um fruto no ponto crítico da maturação, que ela iria reconhecer, perante mim e a funcionária em causa, que fora inconveniente e desnecessariamente cruel com ela.
Temos encontro marcado para sexta-feira, no mesmo Bloco, à mesma hora.
AS vai fazer dentro em breve 16 anos, idade em que as questões de natureza ética ganham dimensão, importância e profundidade.
Independentemente da conflituosidade intergeracional, dificuldade que, bem gerida, se transforma numa oportunidade de diálogo e desafio profícuo, acredito que o ethos do adulto, isto é, a percepção do grau de credibilidade que o jovem lhe atribui, o grau de credibilidade da mensagem, do comunicador ou de ambos, influenciam significativamente o poder de persuasão e a sua eficácia.
A questão é saber como e até que ponto, em escolas grandes, em que as relações e os laços são mais frágeis, se pode estabelecer com um jovem uma comunicação significativa e autêntica.

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