segunda-feira, maio 28, 2007

Leituras

Eduardo Lourenço sobre Eugénio de Andrade
In Paraíso sem mediação, Edições ASA, 2007, p. 45

“OIRO E MELANCOLIA (Sobre Ostinato Rigore)
Um corpo não é casa da tristeza
e eu sempre pousei à entrada
da pedra do verão
Matéria Solar

Na secular tradição lírica portuguesa, toda penetrada do gosto da tristeza e da melancolia, a solar poesia de Eugénio de Andrade parecerá uma excepção. Excepcional o parecerá também pelo seu culto da brevidade, pela sua poética do instante que a palavra deve recolher na forma mais exacta e luminosa. Se se pudesse combinar numa única versão a música tendencialmente silenciosa da poesia de Juan Ramón Jiménez e a claridade ofuscante de Jorge Guillén, não nos sentiríamos tão lusitanamente desorientados diante do autor de Ostinato Rigore. Nem o nosso visceral conceptismo, nem a não menor tentação barroquista da nossa lírica são para Eugénio de Andrade a herança óbvia. Ao longo dos anos, como um anjo alheio a essa herança, Eugénio de Andrade construiu uma das mais transparentes moradas poéticas do nosso século fascinado pela exigência do entendimento confrontado com a opacidade do universo.
Talvez a essência e o milagre dessa singular transparência, que tomaram a poesia de Eugénio de Andrade ao mesmo tempo a mais refinada e a mais popular do nosso tempo português, se cifre toda no facto de ser, na medida em que isso é possível, uma poesia sem sujeito. Poesia sem sujeito como o pode ser a do nosso contacto, impossivelmente inocente, com as realidades primordiais que nos inventam no acto em que as olhamos e nos devolvem sem mediação à nossa esquecida mas sempre presente condição celeste: a luz do sol, o fluir dos rios, o passar do vento, o ritmo das estações, a visão das árvores, o apelo dos frutos. Como se de um Alberto Caeiro, realmente novo Adão antes da culpa (da consciência) se tratasse, foi quase irresistível inscrever o poeta de As Mãos e os Frutos na arcádia do paganismo poético moderno. Na realidade, o seu espaço é um outro espaço. O paganismo foi um excesso de deuses e em Eugénio de Andrade nem há deuses, nem excessos. São as coisas mesmas que modulam a música com que as fala para as deixar intactas no seu original e inviolável silêncio de coisas. Nenhum poeta como Eugénio de Andrade escreveu uma poesia de tal modo conivente com as figuras que lha sugerem e o obrigam a cantá-las, como se tudo estivesse certo no universo e só nós, no fundo, estivéssemos a mais, como Sartre gostava de pensar. “

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