domingo, maio 27, 2007

Francisco de Mello Breyner,
Conde de Ficalho
(1837-1903, na foto, o segundo a contar da esquerda)


Nasceu em Lisboa, mas as suas raízes estavam em Serpa. Foi historiador da botânica em Portugal, escreveu uma biografia de Garcia de Orta e outra de Pêro da Covilhã. Foi também ficcionista, distinguindo-se com a obra Uma eleição perdida, que contém a novela do mesmo nome e alguns contos regionais de ambiente alentejano. Um excerto de um dos seus escritos:


"O caminho, trilhado pelos carros sobre as terras lavradas, subia docemente para a ermida caiada. De vez em quando, via-se lá no alto uma nuvenzinha branca, formada no céu azul; e, instantes depois, ouvia-se estalar um foguete. Aos lados, os campos estendiam-se a perder de vista em ondulações quase insensíveis, amarelando no tom claro dos restolhos, brutamente feridos pelo sol de Julho, que inundava tudo. Apenas, de longe em longe, algumas oliveiras enfezadas punham sobre o caminho poeirento estreitas nesgas de sombra. E a sombra magra, ténue, caindo da árvore pálida, onde as cigarras entoavam o seu hino ao calor; a sombrazita leve parecia ainda mais quente do que o resto.
Mas, apesar do calor, a estrada ia já cheia de gente. As moças do povo, muito sécias nos seus lenços novos puxados à testa, nos seus vestidos de chita clara, que faziam parecer mais negras as suas mãos queimadas, caminhavam num passo firme, indiferentes à torreira do sol, como quem ceifou na véspera, e tem de ceifar no dia seguinte. E, atrás das moças, mais rudes, mais lorpas do que elas, levados pelo beiço, iam os rapagões de trabalho, afogueados, quentes também por dentro com alguns quartilhos de vinho, os chapéus na nuca, e as largas cintas vermelhas, as mangas brancas das camisas, reluzindo na luz intensa.
Um cocheiro gritou aos grupos, que se afastaram, saindo para o restolho, deixando passar a carruagem. Alguns homens levaram a mão ao chapéu, lentamente, de má vontade. Era a caleche do Sr. João Cardoso, o rico, que ia à festa ver as moças, com o delegado e o José Carlos da botica.
Atrás da carruagem, no passo mais lento das mulas velhas, vinha agora um carro alentejano, sem toldo, trazendo dentro um ramalhete de sorrisos frescos, de saias claras e refesteladas, de lenços ganidos, azuis como a flor do almeirão, escarlates como as papoilas, amarelos como os malmequeres – todas as cores fortes do meio-dia, faiscando na luz meridional. Vinham ali a Josefa Vila Verde, e as duas Lameças, e a Chica Sirgueira, e a Anica do Gorro, e, atrás, no pior lugar, a Rita Camacha – porque o carro era dela, e a rapariga, ufana da sua superioridade, fazia as honras às amigas.
Eram bonitos de lei, os vinte anos da Rita Camacha. No seu narizito um pouco levantado, e na sua boca graciosa brilhava ainda um sorriso alegre de criança; mas os cabelos pretos, pesados, e os olhos grandes, de um tom castanho, a que os laivos verdes davam transparências fundas de ágata, modificavam-lhe a expressão, tornando-a mais mulher, involuntariamente provocante. E o que havia de singular naqueles olhos da Rita, eram as pestanas negras e bastas, tão negras e tão bastas, que os olhos pareciam pintados, artisticamente feitos a lápis preto por uma actriz francesa."

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