segunda-feira, setembro 03, 2007


Deixa-te lá de teorias!




Quem é que já não ouviu esta frase? Quando alguém procura uma explicação para um fenómeno que não se fique pelo senso comum, do “acho que”, haverá sempre um outro que disparará a frase mágica dos apressados:

Deixa-te lá de teorias! (e normalmente está toda a gente com muita pressa...)

Mas o que é afinal uma “teoria”?

Em termos etimológicos,uma teoria é uma visão; a palavra vem do grego θεωρία, que significa representação pública; em latim, o termo adoptado foi speculari ou ainda contemplari.

O conceito assume assim a acepção de ver, olhar, observar atentamente; mas o conceito foi também adquirindo o significado de visão intelectual, seja ela racional, intuitiva ou imaginativa.

Toda e qualquer atitude cognitiva tem de ser lógica e coerente e que ultrapassar o superficial e o opinativo (o tal achismo do eu acho que…), pelo que, quando falamos de teoria, seja ela científica ou filosófica, estamos sempre a referir-nos a uma “visão intelectual”.

A ciência actual, mercê sobretudo do desenvolvimento dos métodos de investigação, da valorização das metodologias qualitativas, que se incluem nas chamadas correntes pós-positivistas, passou a atribuir grande importância à intuição racional e à imaginação racional.

Ora, a intuição, propõe Bachelard , tem dois níveis: o sensível e o racional, embora a intuição sensível levante obstáculos epistemológicos.Mas a intuição racional já procede de uma escolha e Bachelard atribui-lhe um valor muito particular; vejamos a distinção entre uma e outra feita por Bachelard:


Outrora, a filosofia geral da experiência em física foi muito bem expressa por esta fórmula de Paul Valéry: é preciso, diz o poeta, que, para glória da visão, «se reduza o que se vê ao que se vê». Hoje diríamos, se quiséssemos traduzir a verdadeira tarefa da microfísica: é preciso reduzir o que não se vê ao que não se vê, passando pela experiência visível. A nossa intuição intelectual tem vantagem sobre a intuição sensível. O nosso domínio de verificação material apenas nos fornece uma prova excedente para os que não têm a fé racional. Pouco a pouco, é a coerência racional que suplanta em força a coesão da experiência usual (BACHELARD, Études).

Bachelard fornece-nos ainda um quadro conceptual do espírito científico. Leiamos:


A ciência, na sua necessidade de realização como no seu princípio, opõe-se absolutamente à opinião, (o senso comum). Se acontece, num ponto particular, legitimar a opinião, é por razões diferentes das que fundamentam a opinião; de forma que esta, por direito, nunca tem razão. A opinião pensa mal; não pensa; traduz necessidades em conhecimentos. Ao designar os objectos pela sua utilidade, impede-se de os conhecer. Nada se pode basear na opinião; primeiro, há que destruí-la. Ela é o primeiro obstáculo a ultrapassar. Não bastaria, por exemplo, rectificar o senso comum em pontos particulares, como uma espécie de [...] conhecimento vulgar provisório. O espírito científico impede-nos de ter uma opinião sobre questões que não compreendemos, sobre questões que não sabemos formular claramente. Antes de mais, é necessário saber por problemas. E diga-se o que se disser, na vida científica os problemas não se põem a si próprios. É precisamente este sentido do problema que dá a marca do verdadeiro espírito científico. Para um espírito científico, todo o conhecimento é a resposta a uma questão. Se não houve questão, não pode haver conhecimento científico. Nada é evidente. Nada é dado. Tudo é construído" (BACHELARD, La formation de l´esprit scientifique, Vrin, Paris, p. 16).

A posição epistemológica de Popper nesta matéria é também reveladora :

Partimos, de um problema, uma dificuldade. Pode ser prático ou teórico. Seja o que for, quando primeiro encontramos o problema não podemos, obviamente, saber muito a seu respeito. (...) Devemos, portanto, produzir essas soluções mais óbvias; e devemos criticá-las a fim de descobrir porque não funcionam. Assim ficamos a conhecer o problema e podemos passar de soluções más para outras melhores - sempre, contudo, desde que tenhamos capacidade criativa para produzir suposições novas, e mais suposições novas" (POPPER, Conhecimento objectivo).Ora, tal como Kosik salienta, a praxis utilitária imediata e o senso comum a ela correspondente colocam o homem em condições de orientar-se no mundo, de familiarizar-se com as coisas e manejá-las, mas não proporcionam a compreensão das coisas e da realidade.

A complexidade dos fenómenos que vivemos no nosso quotidiano constitui apenas, como Kosik também afirma, o mundo da pseudoconcreticidade: é com frequência que ouvimos pseudo-argumentos do género “é o que me parece”.Tudo o resto fica por explicar:mas é neste ponto que começam as chamadas perguntas difíceis que nos obrigam a pensar de forma mais crítica:

Como é que se formou a ideia?
O que a alimenta, isto é, quais são as provas, as razões?
Quais são as possíveis objecções?
Quais são as suas consequências e implicações, o que deriva das premissas, quais são as consequências a enfrentar?

Não é raro que cheguemos a explicações do tipo porque sim.

Portanto, quando nos dizem “deixa-te de teorias!”, temos de ter em mente que uma teoria bem fundamentada é muito mais prática, objectiva e eficaz do que os muitos “porque sim” com que a falta de um pensamento verdadeiramente crítico nos contempla.

3 comentários:

Miguel Pinto disse...

M.F.Patrício evoca Leonardo Coimbra para defender a prevalência da teoria sobre a prática: ... em nada o homem é meramente prático, e dificilmente o é o burro" (Patrício, 1992) ;))

Paideia disse...

ão se trata tanto de prevalecer, antes de "iluminar"...
:))

JMA disse...

Claríssimo...