domingo, outubro 22, 2006


Um texto que publiquei no nº. 3 da revista PSICOLOGIA, de Maio de 2006. Um abraço grande para toda a equipa pelo excelente editing que acompanhou o artigo.


Síndrome de Asperger


Sou professora do 2º ciclo e fiquei hoje a saber que no próximo ano lectivo vou ter um aluno com síndrome de Asperger.

A minha carreira já vai longa e sempre tive uma tendência e um carinho muito especial por crianças “diferentes”. Fiquei a conhecer há pouco tempo as características da síndrome de Asperger, através de um livro de Tony Atwood que uma grande amiga anda a traduzir e que, segundo ela me informou, será brevemente publicado em Português. Ajudei-a a rever alguns capítulos e fiquei fascinada. E também surpreendida: dos meus mais de 30 anos de serviço, lembrei-me de algumas crianças, sobretudo rapazes, que no Conselho de Turma nunca conseguimos perceber muito bem. Não foram muitos, é certo. Percorri-os mentalmente, um a um e conclui que, das mais de 2000 crianças que por mim passaram e por quem passei, seis delas, se à altura houvesse instrumentos de diagnóstico adequados, seriam seguramente sinalizadas como portadoras da síndrome.
Lembro-me do Tó, por exemplo, um miúdo pequenino e moreno que, nos dias mais difíceis, varria com o braço todo o material do colega de carteira e atirava tudo ao chão – bendito Francisco, sempre tão paciente com ele. Começava então um longo processo de negociação, que conduzia, com mais ou menos custo, à recolha partilhada dos objectos espalhados, sempre acompanhada de um discurso bem articulado, mas pobre em termos de interacção.
Um dia, o meu colega Celestino, professor de Ciências da Natureza e paleontologista entusiástico, organizou na escola uma exposição sobre dinossauros. Combinámos, a turma e eu, uma visita à mesma. Para grande espanto nosso, o Tó sabia tudo sobre dinossauros: aquela figurinha de 10 anos era uma enciclopédia ambulante. De súbito, pára diante de uma peça e exclama: «Ò setor Celestino, esta peça é do museu da Lourinhã, não é?» … «Pois, é que eu já a vi lá…». Apanhava grandes tareias no recreio, mas preferia-as à solidão; isto, quando não lhe dava para ficar sozinho a um canto do pátio, remoendo diálogos imaginários.
As pessoas com síndrome de Asperger (AS) têm uma personalidade única, com manifestações muito específicas; é por isso que nós, os professores, temos tantas dificuldades em avaliar e sinalizá-las; por isso, também não existe uma receita única, em termos de abordagem educacional. São muito sensíveis às pressões ambientais, muito ritualistas, têm tendência a resistir a mudanças, ainda que mínimas. Os seus medos obsessivos são fonte de stresse e de sobrecarga emocional. Têm dificuldade em entender as regras do convívio social, são consideradas egocêntricas e manifestam grande ingenuidade social. O tom de voz é geralmente monocórdico ou mesmo estridente, olham-nos fixamente, não entendem a linguagem gestual, dão a impressão de terem alguma insensibilidade táctil e podem até não gostar do contacto físico.
Sinto-me mais preparada para o ajudar a adaptar-se à nova escola, a gostar de cá estar e de aprender. Vou procurar explicá-lo às outras crianças e elogiá-las quando o tratarem bem, vou valorizar os seus interesses e capacidades – procurar, enfim, que ele seja bem aceite. Como sei que estas crianças gostam de ter amigos, mas têm dificuldade em fazê-los, vou procurar que ele aprenda algumas regras de convívio que os outros entendem de forma intuitiva, incentivar o seu envolvimento com outros, encorajá-lo a participar das conversas.
Olhando assim, em retrospectiva, estes meninos com síndrome de Asperger terão sido os que, na minha carreira, menos compreendi e por isso, menos amei e menos ajudei.
Agora que compreendo melhor a síndrome, vou ouvir os pais com muita atenção para recolher informação que certamente vai ser preciosa, para que ele se adapte à nova escola e goste de cá estar e de aprender. No próximo ano lectivo vou aprender com este menino, vou procurar ajudá-lo e crescer com ele, como professora e como pessoa.

PS: Nesta história há apenas dois nomes verdadeiros: o de quem escreveu a crónica e o do Dr. Celestino Coutinho, professor da EB 2+3 Joaquim de Barros, em Paço de Arcos, a quem presto homenagem pela sua imensa dedicação à profissão e à paleontologia.

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