Mitologias
Aprender a aprender
Outro slogan muito apelativo, pela sensação de liberdade, de descoberta, de curiosidade à solta, de grandes espaços abertos que evoca. Como não nos apeteceria descobrir a fisiologia de uma flor no espaço amplo da floresta, em que todos os nossos sentidos são chamados a perceber o mundo e os seus incontáveis segredos e maravilhas.
Em vez disso, ali temos no livro, bem esquematizada, por sorte será colorida, a fisiologia da orquídea: que nostalgia do cheiro e do tacto, todos os nossos sentidos evocam o tempo pré-escolar, fluido, desregrado q.b., em que sentar-se ou deitar-se no chão era o último dos gestos, de cansaço gostoso, de contemplar prazeiroso do movimento das nuvens em cúmulo, em rebanho nos céus, e o sol-e-dó preguiçoso das cigarras nas tardes de Verão.
Aprender a aprender, mais do que um conjunto de estratégias de aprendizagem, tornou-se num slogan difuso associado a uma escola mais humanizada, mais próxima da vida real. Em educação, os princípios e os conceitos têm de ser mais do que difusos. A nível das microdecisões podemos tomar em cada momento um caminho ou outro, mas fazemo-lo justamente porque temos a noção de que o nosso trabalho exige sistematização, deliberação, intenção: qualquer ziguezague serve para corrigir uma trajectória, inventar um novo caminho, ponderar as consequências, começar de novo, experimentar novamente.
Esta ideia do aprender a aprender está naturalmente associada a Bruner e às teorias construtivistas mais radicais da aprendizagem: a aprendizagem pela descoberta, a aprendizagem através da resolução de problemas são as estratégias que mais evocadas.
Estas estratégias são mais eficazes que a abordagem instrucionista? Tem sido uma questão muito explorada da investigação em metodologia e didáctica. É uma espécie de discussão sobre a existência de Deus, em que cada parte brande os seus argumentos sem prestar muita atenção aos argumentos da outra.
Os instrucionistas dizem que a investigação não prova que a abordagem construtivista produza mais e melhor aprendizagem? Dizem-no, comprovam e demonstram de forma inequívoca que uma instrução menos guiada é significativamente menos eficaz que uma instrução mais estruturada.
O construtivismo jura que as estratégias de aprendizagem que preconiza são mais motivadoras, mais estimulantes, mais próximas de uma atitude de aprendizagem que pode e tem de durar toda a vida, como é necessário nos dias de hoje? Juram-no e provam-no com alguma substância.
E então? Em que ficamos?
Lamento não poder dar, com o suficiente conhecimento de causa e condizente clareza e precisão, exemplos na área científica e da matemática, onde a investigação em aprendizagem pela descoberta e pela resolução de problemas tem encontrado o seu espaço de eleição. O campo das línguas é menos apelativo para exemplos desta natureza, porque certas estratégias de aprendizagem estão associadas a uma pedagogia humanista. Terei, contudo, de me cingir a esse contexto para clarificar o meu ponto de vista.
Em primeiro lugar, porque é muito importante e básico: as estratégias de aprendizagem têm de ter em conta o nível etário do aluno, os seus conhecimentos anteriores, as suas competências cognitivas e estratégicas, os objectivos. Uma aprendizagem pouco dirigida é mais eficaz nos alunos mais velhos, que já sabem guiar as suas aprendizagens e já têm do campo algum conhecimento.
Imaginem o que é ensinar uma língua estrangeira a uma criança através da aprendizagem pela descoberta: facilmente se compreende o absurdo resultado de aprendizagens mal estruturadas, de erros acumulados à falta de orientação do professor, em termos do que é comunicacionalmente essencial, mesmo quando aprendem a comunicar em simulações de situações do quotidiano.
Então onde cabem as aprendizagens menos dirigidas? Cabem, naturalmente, em diversas fases da aprendizagem do que é essencial a uma determinada situação de comunicação.
Cabem, naturalmente, numa primeira fase de identificação da situação de comunicação, em que o vocabulário essencial pode ser enriquecido, numa perspectiva de aprendizagem colaborativa: cada menino, par ou grupo, vai procurar enriquecer a área vocabular com duas, três, quatro palavras ou expressões novas.
Feita a pesquisa, apresenta-a aos outros, numa situação normalmente monitorizada pela professora, em que esta chama a atenção para os vocábulos e expressões mais adequados ao nível (etário e linguístico) que ensina; corrige más interpretações, corrige a pronúncia, isto é, integra as contribuições dos alunos, numa perspectiva colaborativa, mas introduz momentos de aprendizagem bem guiados por si.
A exploração da situação de comunicação continua. O que é essencial foi trabalhado, há que criar um espaço de desenvolvimento mais livre, menos guiado, que envolve recolha e tratamento da informação.
A professora propõe então um pequeno trabalho de projecto em que cada aluno, par ou grupo, vai recolher e trabalhar um segmento específico daquele conjunto de conteúdos. Admitamos que a professora sugere que os meninos façam uma pesquisa sobre os animais em vias de extinção: fornece o site em que os meninos vão recolher a informação, quanto mais novos mais confuso se tornará variar muito as fontes, cada menino escolhe o seu tema, a professora fornece um guião que define os parâmetros do trabalho, para que as aprendizagens sejam relevantes e significativas e para que os meninos não se percam na torrente de informação a que podem aceder; e perder-se significa não ser capaz de lidar com tanta informação, não tirando dela qualquer vantagem e conhecimento, risco em que estão justamente os meninos menos treinados ou menos autónomos.
A articulação entre uma abordagem mais estruturada e uma abordagem menos guiada consagra uma metodologia mais diversificada, mais consentânea com a diversidade cultural e individual.
Em suma, insistir nesta mitologia do aprender a aprender é ficar parado no tempo, algures há quase cinquenta anos, em que nada se conhecia sobre as estruturas e relações da arquitectura da cognição humana. Hoje em dia sabemos muito mais sobre a memória de longo prazo, a que tem de sofrer mudanças para que alguma aprendizagem ocorra; se a instrução não tem como objectivo essa mudança, não pode ser eficaz. Quanto à memória de trabalho, a sua capacidade é limitada e tudo o que nela ficou se esvai se não for activado quase de imediato.
Em termos de transferência da aprendizagem para novos contextos, eventualmente um dos problemas mais complexos em educação, a investigação empírica não apresenta quaisquer evidências de que uma aprendizagem pouco guiada seja de melhor qualidade.
sexta-feira, fevereiro 22, 2008
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1 comentário:
Simplesmente interessantíssimo! Das melhores coisas sobre construtivismo que li nos últimos tempos. Obrigado!
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