sexta-feira, fevereiro 22, 2008



Mitologias



A ideia de que os alunos são pessoas que aprendem e não seres que se ensinam, pode até ser apelativa, mas é peregrina.

Como se, enquanto pessoas não possam ser ensinadas ou, por outro lado, sendo seres, não possam aprender.

Os seres vivos são seres aprendentes: é essa capacidade que lhes permite adaptar-se aos ecosstistemas. Quando deixam de o fazer, não sobrevivem, extinguem-se.

As pessoas são ensináveis: tudo nos é ensinado, o que está provado pela descoberta de meninos selvagens que se comportavam como os animais que os tinham socializado, privados de linguagem articulada, mediador essencial da interacção humana, ou com as crianças encarceradas que, privadas de interacção humana, ficaram irremediavelmente diminuídas.O ser humano é um ser eminentemente social.


A ideia peregrina de que as pessoas são seres que aprendem e não seres que se ensinam (como se uma coisa estivesse nos antípodas da outra) aplicada à Escola, além de peregrina, é contra-natura.

A Escola é, por natureza, o local de eleição para ensinar. Essa é justamente a sua função: fazê-lo deliberada, sistemática e intencionalmente. Foi inventada quando, à organização social, já não bastava a aprendizagem em contextos mais naturais, informais e menos estruturados.

Mais: a correlação entre um bom ensino e uma boa aprendizagem é altamente positiva, o que está provado por milhares de estudos empíricos.

Mais: quanto mais desfavorecidas são as crianças, seja em termos sociais, económicos, seja pelas suas características individuais, mais crítica é a qualidade do ensino.


A ideia de que as crianças aprendem independentemente do que e do como lhes é ensinado faz tábua rasa de todo o conhecimento construído durante o último meio século sobre a arquitectura da cognição humana, em que os estudos de Miller (laureado com um Nobel) sobre a memória, têm uma importância seminal.

Basta vê-los jogar ao jogo do 24 para se perceber o quanto esta teoria de que as crianças aprendem por si mesmas, que é um sub-produto da má assimilação dos princípios do construtivismo nas suas versões mais radicais, tem sido arrasadora.

O resultado do princípio de que as crianças não são seres que se ensinam é privante: chegam-nos sem conhecimentos essenciais, sem saber ler as horas, sem saber quando começam e acabam as estações, sem competências de leitura que as tornem capazes de interpretar o que lêem, à mingua de um ensino estruturado, que lhes transmita um conhecimento essencial a uma construção eficaz de novo conhecimento: são como uma casa desarrumada onde ninguém sabe onde está o par da meia que quer calçar.

Retiradas que lhes foram as bases do raciocínio matemático, todo o seu processo de cognição se torna muito mais lento, porque não têm bem arrumado na sua memória de longo prazo o conhecimento essencial e, assim sendo, a memória de trabalho demora muito mais tempo a completar os processos necessários à solução do problema.

A memória destas crianças faz lembrar uma caixa de enfeites de natal desirmanados, em que as bolinhas não condizem, nem umas com as outras, nem com as fitas: quando precisam de montar a árvore, vão à caixa e nada está arrumado.

Educar é, no seu sentido mais primitivo e essencial, conduzir, guiar, orientar para um crescimento harmonioso e equilibrado. As vantagens desta condução começam a perder importância apenas quando o aprendente tem conhecimentos prévios que lhe permitam uma auto-condução eficaz.

É só olhar para duas crianças a brincar: a mais velha tende a colocar-se de imediato na posição de quem partilha o que já sabe, ensinando a mais nova, enquanto esta, quanto maior é o seu potencial, maior atenção presta ao que o mais velho lhe transmite.

Sem comentários: