No gabinete de atendimento
Aproveitar um conflito para promover a reflexão crítica
Armou-se um grande burburinho à porta do Bloco Administrativo. Dois rapazes faziam menção de se atirar um ao outro, enquanto outros os seguravam sem grande convicção. Conseguiram separá-los e trazer um cá para dentro.
Acorreram logo duas professoras que tentaram entabular conversa com os contendores mas, como os deixavam continuar aos berros, não conseguiram grande acalmia e seguiram para as suas tarefas.
Já se encontravam um à frente do outro, bufando como locomotivas doidas no Gabinete de atendimento, quando fui chamada a intervir.
A. mostrava um ar duro, fulminante, a turbo, mas relativamente contido; C. soluçava, sacudindo-se todo.
Ponto 1: vamos lá acalmar os ânimos: um pouco de silêncio e de ventilação: inspira, expira, inspira, expira.
Ponto 2. Eu não quero que se digladiem quanto à versão dos acontecimentos - não estou aqui para julgar ninguém, mas para reflectirmos sobre o que se passou e pensarmos em melhores formas de lidar com situações idênticas, OK?
Aceite o OK, expliquei:
Agora, cada um vai escrever a sua versão dos acontecimentos, deixando uma linha de intervalo entre cada duas linhas.
Fez-se silêncio e, à medida da escrita e da racionalização dos acontecimentos, os ânimos serenaram.
Eu já escrevi, disse A.
Um texto de umas dez linhas com minuciosa descrição factual, mas carregadinho de erros de ortografia. É certo que esta escrita revela alguma falta de memória ortográfica, mas não uma dislexia. A maioria dos erros regista-se na conjugação verbal, a revelar muita falta de trabalho e de repetição - mas está no 7º. ano.
Bom, comento eu, após leitura, existem aqui alguns erros de ortografia, não podemos apresentar o texto assim ao Sr. Presidente do Executivo... Olha, está tudo corrigido. Passas a limpo, por favor?
A. acata sem discussão; fico com a impressão de que estranha este comportamento sem críticas, sem lamechas, sem moralismos, mas rigoroso.
C, também do 7º. ano, escreve com menos erros. Lamentavelmente esqueceu-se de deixar os espaços entre algumas linhas.
C., lembras-te que eu te pedi para deixar espaço entre as linhas?
Ah, é verdade! Vou passar de novo! Oferece-se pressuroso, olhos ainda inchados, mas sem soluçar.
Depois dos textos passados a limpo, A e C vão ter que sublinhar todas as frases começadas por eu: eu empurrei, eu bati, eu ri-me.
A seguir, confrontei as versões, não sem antes avisar: Eu não vou julgar ninguém, nem me vou preocupar muito em apurar a verdade: vamos apenas confrontar as versões, destacar as coincidências e tentar explicar e clarificar eventuais divergências.
Verificámos que as divergências se deviam sobretudo a interpretações da atitude do outro.
Cada um teve então que substituir as frases começadas por eu, ou em que fosse sujeito e escrever na linha intermédia uma forma alternativa de como poderia ter reagido para que o conflito não fosse tão grave ou nem tivesse sequer surgido. Identificámos também a sua origem, de uma forma muito objectiva, em que A concordou que fora uma acção sua a desencadear a situação.
Ambos são solicitados a redigir a sua conclusão.
C aventa: acho que devíamos ter mais respeito um pelo outro...
Não estou ali para facilitar: Eu gostava que explicasses melhor o que significa isso de termos mais respeito: Referes-te a quê, concretamente?
C. começa a explicar e A. dá uma ajuda, acrescentando, corroborando, numa de colaboração.
Contados os murros, os encontrões e as estaladas, A., em cujos braços e mãos pululam nódoas negras e feridas em diversos estados de cicatrização, fica a ganhar por 4 a 3.
Desinfecta a ferida do cotovelo direito, que ainda está em carne viva, enquanto C segura no frasco de Betadine:
-Segura aí, C., por favor...E vai buscar um penso.Tira aí um penso da gaveta dos pensos pequenos
e, após termos combinado um novo encontro para poderem falar um com o outro, desejamo-nos mutuamente bom fim de semana.
Não lhes pedi ainda que apertassem as mãos: pareceu-me ainda cedo e não vale a pena suscitar atitudes socialmente convenientes para constarem do figurino.
A e C também me explicaram alguns termos utilizados na descrição, alguns dos quais estão relacionados com desportos, mas já não me lembro.
Testosterona...
sábado, outubro 13, 2007
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3 comentários:
Quem me dera gerir tão bem os conflitos.
Quem me dera estar sempre inspirada!
:)
Foi um bom exercício.Imagino que as "participações" se ficaram por estes imediatos usos - reflectir sobre os erros, os ortográficos e os outros - e não seguiram para lado nenhum.
Essa do inspirar, expirar, inspirar, expirar é mesmo obrigatória como início do processo.
Também gosto deste papel de "Tia Verde-Água". Já tentei ter mesmo uma barraquinha lá num canto do pátio para cumprir dedicadamente essa função mas nunca tive êxito.
Que estejas muitas vezes inspirada!
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