Carregada de dossiês com trabalho a meio, livro de ponto e pasta, lá atinei com a sala. A professora de EV faltara e eu ia substitui-la.
A pesada “folha de serviço” da turma do 9º. Ano aconselharia uma escolha prudente do professor de substituição que, em princípio, já deveria conhecer as sinergias da turma e os líderes da asneira. Felizmente, a substituição calhou numa hora em que eu estava de serviço, em vez de algum jovem professor que, incauto, caísse no circo de feras.
Abri a porta dos alunos, apresentei-me e mandei entrar. Galhofa, dichotes e protestos:
- Só me faltava mais esta...não nos bastava a besta da M. (a professora ausente).
Sempre à porta, procurei estabelecer diálogo, dizendo:
- Preparei uma aula de observação do aproveitamento das águas no pátio e gostava de ver os dados que somos capazes de recolher. Na realidade, havia gasto mais de duas horas na preparação desta aula, sempre com o intuito de utilizar o método científico, já que – diz-se, mas eu não acredito – os nossos meninos são avessos às Ciências.
Quando já haviam decorrido seis minutos de “diálogo”, mudei de estratégia:
- Têm um minuto para entrar.
Metade da turma entrou, a outra metade ficou lá fora, hurrando e dando murros e pontapés na porta. Na sala, a grande algazarra prosseguiu. Procurei sem êxito que o meu silêncio os acalmasse. Chamei a delegada de turma, pedi-lhe que me apresentasse a turma e que conferisse comigo o número dos alunos em falta, entre risadas e berros. Perguntei qual o professor em falta e um aluno respondeu que “foi a M., não conhece?”. “Só conheço a professora R e gosto muito dela”.
De repente, batem de novo à porta, num som ajustado. Um aluno, chamemos-lhe J, pede-me educada e simpaticamente para entrar, ao que acedo. Um outro aluno, chamemos-lhe E, pergunta grosseiramente, porque não entrava ele também. Respondo-lhe que entrará se me pedir com maneiras; pediu e entrou.
J. pergunta-me qual a disciplina que lecciono e respondo-lhe; é então que me pede que fale um pouco Inglês, ao que acedo. J. aquilata: “Tem uma excelente pronúncia”; Agradeço o apreço e pergunto-lhe se prefere sotaque à Príncipe Carlos ou à Alabama e exemplifico ambos. Escolhido o Príncipe Carlos e aproveitando a onda, sugiro que, dado o adiantado da hora, reflictamos um pouco sobre o que é ser estudante. What is to be a student?, registo em letra grande no quadro, que divido ao meio, para que cada um venha pôr, do lado esquerdo, as suas dúvidas sobre vocabulário, a que outros responderão do lado direito. Mal sabem usar o quadro. Apago as primeiras interrogações e desenho linhas horizontais, para que tudo fique mais legível. Olho em redor. Não há regras de aula visíveis e as mesas de trabalho dos estudantes estão em desorganização total.
- Em cima da mesa – acrescento – deixam apenas uma folha de papel e um lápis. Tudo o resto vai para dentro das mochilas. A maioria dos alunos acata com rapidez a indicação, mas uma entre eles atira:
- Issékérabom! Escrever em inglês numa aula de substituição! Ólhamésta!
Respondi pausadamente que ela iria ter em cima da mesa apenas uma folha de papel e um lápis. Sei que a organização do espaço de trabalho é uma aprendizagem a que as professoras do primeiro ciclo dão particular importância. A aluna continuou no mesmo tom. Três vezes repeti a indicação, três vezes se negou a cumpri-la. Até que eu lhe disse que, um minuto depois, tudo o que estivesse em cima da sua mesa, para além do papel e do lápis, seria retirado, fazendo com a mão um gesto do centro da mesa para o extremo direito, em direcção ao chão. Esperei um minuto olhando para o relógio, ao fim do qual apliquei o gesto. A mochila foi ao chão. A aluna voltou a pôr a mochila em cima da mesa, a mochila ao chão voltou. Entretanto, entre a primeira e a segunda verificação prática da Lei da gravidade, uma outra aluna sugere-lhe, de modo que eu oiça: “ Se fosse a ti ia-me já embora”. Respondi-lhe que quando chegasse ao pé dela, a sua mesa teria de estar conforme as instruções. Depois do segundo tombo, a mochila foi posta no devido lugar e primeira menina começou a produzir texto. À outra, disse-lhe que só tinha meio minuto para se organizar. Nova verificação prática da Lei da gravidade. Lembrei à aluna que era livre de fazer o que sugerira à colega e ela saiu. Aí o trabalho começou. Finda a aula, recolhi as reflexões e participei o comportamento da turma a quem de direito. Quando cheguei a casa, a tensão arterial estava a 220-123.
Nas duas semanas seguintes fui indagando sobre se o assunto tinha sido tratado com a turma, mas aparentemente o tempo escasseou para o efeito. Ao invés, primeira a ser chamada à direcção da Escola fui eu: Que não podia ser, que tinham caído ao chão com dano uns materiais evidentemente escolares e uns paizinhos candidatos a indemnizações de um telemóvel e um i-pod. … Ai pode, pode, pensei e disse.
Um mês depois, ainda há uns brincalhões da turma que se vão pôr à espreita da minha aula. Já terão ouvido que sou uma pessoa bem disposta? Ou o problema continua mal resolvido?
E quando o hipotensor não der para as encomendas? Quem é que paga a factura do estrago? Como ninguém perguntou, pergunto eu.