quarta-feira, fevereiro 28, 2007


Leituras

A área de Broca é uma das mais estudadas desde que se compreendeu que as funções cognitivas tinham uma morada no córtex cerebral, tanto mais que nela se localiza um dos traços mais distintivos do ser humano: a linguagem.
Graças aos progressos alcançados pela imagem no mapeamento das funções do cérebro, a investigação tem conseguido resolver os principais mistérios e corrigir os erros mais grosseiros.
O livro de Grodzinsky e Amunts procura sintetizar o conhecimento através de perspectivas científicas diversas, da psicologia cognitiva, da biologia, da neuroanatomia, da neurologia.
Neste livro, Grodzinsky e Amunts incluíram os primeiros textos de Paul Broca e de dois dos mais reconhecidos neurologistas do Sec. XIX sobre a matéria: Lichtheim e Hughlings-Jackson, acompanhados de outras contribuições relevantes relevantes do Sec. XX, como a de Jakobson, Goodglass e Mohr, entre outros. A relação entre o cérebro e a linguagem é uma área de investigação fascinante, onde ainda há muito para descobrir.
Broca's Region, editado por Yosef Grodzinsky and Katrin Amunts, OUP, 2006.




Finalmente, um boneco dourado

Finalmente, e à sexta nomeação, Martin Scorsese recebe o boneco dourado pelo filme "Os Infiltrados". O tema não é do meu particular agrado, mas já o teria merecido por Alice já não mora aqui (1974), Taxi Driver (1976), New York, New York (1977), A última valsa (1978), After Hours (1985), A cor do dinheiro (1986), A última tentação de Cristo (1988), O cabo do medo (1991), Casino (1995, fantástico!),Gangs de New York (2002), The Departed(2006), entre muito outros. Merecido.


Acabou a aula a chorar

Já a conheço há aaaanos, sempre com o mesmo ar pachorrento. Outro dia perguntou-me como é que eu conseguia “segurar” a turma. Mas fê-lo com um seu ar eternamente paciente e eu não dei muita importância. Comentei que já toda a gente sabia que ela era particularmente benevolente, do mesmo modo que todos sabem que eu não sou “boa de assoar”.
As coisas parecem ter piorado. Por princípio, a cultura dominante é que um professor tem de saber manter a disciplina na sala de aula. Ninguém sabe muito bem como é que cada um faz. Actuamos todos como se não houvesse nada para discutir, experiências para cotejar, como se, quem não consegue manter a disciplina, é porque é fraco ou inepto.
Uma das representações dominantes sobre a condição docente é a de que se trata de uma profissão altamente stressante: um estudo internacional de 2000 revela que 40% dos professores inquiridos tinham ido ao médico durante o ano anterior por razões associadas a stress e problemas de saúde afins, tais como hipertensão, insónia, problemas gastrointestinais, depressão e comportamentos aditivos, designadamente consumo de álcool e de medicamentos.
Os factores de stress nos professores prendem-se com aspectos intrínsecos ao ensino, factores cognitivos e factores sistémicos de natureza institucional e política.
Um aspecto curioso prende-se com as alturas do ano: se é verdade que o fim-de-semana parece ser suficiente para recuperarmos durante a Primavera, o mesmo não acontece durante o Inverno. De entre os factores intrínsecos, a gestão da disciplina na sala de aula vem à cabeça
(Lewis, 1999; Morton et al, 1997): verificou-se uma elevada correlação entre elevados níveis de stress e a percepção de incapacidade – ou impotência - para manter a disciplina. Por outro lado a manutenção da disciplina é o único factor de stress que não diminui ao longo da carreira. Curioso, não?

Outro factor que influencia os níveis de stress é a forma como as professores encaram as suas obrigações, isto é, o grau de responsabilidade que se atribuem quer nos resultados escolares dos alunos, quer na forma como estes se comportam. Quanto mais um professor atribui a si próprio a responsabilidade dos fracassos, maior é a sua vulnerabilidade ao stress.
Depois, é o silêncio pesado que se abate sobre o assunto, o recusarmo-nos a falar disso, a admitir as nossas fragilidades, a solidão e o medo do que os outros vão pensar se acusarmos fraqueza. Para mim, isto é o pior de tudo, porque nos deixa sós com a nossa angústia, nos impede de a partilhar, de falar abertamente sobre os problemas e de os enfrentar colectivamente.

É que já bastavam os factores de natureza sistémica: esta mudança contínua de rotinas, procedimentos, currículos, este clima social de um governo apostado em desmoralizar os professores.
Estou em crer que entre as formas mais eficazes de lidarmos com estes factores consiste em apoiarmo-nos mutuamente e em sermos apoiados pela direcção da Escola.
Pelo menos, a “Senhora dos cabelos brancos” foi ter uma conversa com os nossos “terroristas”. Vamos ver o que, no conselho de turma, conseguimos fazer connosco, se nos damos a oportunidade de mutuamente nos ajudarmos. Talvez ela não volte a chorar e a mim, a tensão me suba menos.

sexta-feira, fevereiro 23, 2007

terça-feira, fevereiro 20, 2007


Os homens morrem, o sonho não

Todos estes anos passados, o discurso de Martin Luther King, naquele lugar mágico e arrebatador, carregado do melhor da história dos Estados Unidos da América, tem a força essencial do Verbo, como força criadora e de liberdade.




And when this happens,

When we allow freedom to ring,

when we let it ring from every village and every hamlet,

from every state and every city,

we will be able to speed up that day when all of God's children,

black men and white men, Jews and Gentiles, Protestants and Catholics,

will be able to join hands and sing in the words of the old Negro spiritual,

"Free at last! free at last! thank God Almighty, we are free at last!"



sexta-feira, fevereiro 16, 2007

Lá me despachei! Pois...
A defesa da minha tese de doutoramento foi no dia 5 de Fevereiro, dia em que completei os meus 55 anos. Foram meus arguentes o Prof. Paulo Dias, da Universidade do Minho, que vinha elegantérrimo no seu laço "burgundy", o cabelo para o comprido, de um grisalho liiiiiiindo e o Prof. Bidarra de Almeida, da Universidade Aberta, mais ectomorfo e sisudo, mas impecável nos seus paramentos doutorais. A minha Profinha Guilhermina Miranda, lindérrima como sempre, no seu louro realçado pela toga negra. Chiquíssima!
A coisa não correu mal. Lá me safei das críticas, às vezes com a minha ironia a caminhar para o verrinoso. Com um público numeroso e condescendente, na sua grande maioria constituído por gente que me conhece desde a adolescência, como o Vidaúl, o Bacalhau e o Quim ou da juventude, como o Pinto e Castro e o Cardoso, mais o meu primo, o Sr. Juiz desembargador, a minha menina (Dora) e os seus foférrimos progenitores e os meus três mais-que-tudinhos, e mais a Joana Campos, provalvelmente uma das mais representativas figuras do projecto Navegar e todos os outros queridos que lá estiveram, em especial o meu querido menino Miguel de Jesus e seu pai, o Sotto Mayor, enfim, uma audiência quentinha e calorosa que, evidentemente contagiou o digníssimo Júri.
Lá me saí com nota máxima: Muito Bom com Distinção e Louvor. Sim, tudo em letras maiúsculas, porque nesta coisa de notas mantenho o espírito da minha juventude: iria chorar desalmada à porta do Júri se assim não fosse, como fazem as alunos do Prof. Daniel Sampaio (que, aliás, lá pelos idos de 1999, só me deu 18 na disciplina do Mestrado: um bocadinho agarrado à nota, convenhamos...)

A árvore do perdão, de Edward Burne-Jones


A nota de hoje da Conferência Episcopal Portuguesa refere-se ao resultado do recente referendo como um sinal de "uma acentuada mutação cultural no povo português"; como causas de tal mutação refere:

a) a mediatização globalizada das maneiras de pensar e das correntes de opinião;

b) as lacunas na formação da inteligência, que o sistema educativo não prepara para se interrogar sobre o sentido da vida e as questões primordiais do ser humano;

c) o individualismo no uso da liberdade e na busca da verdade, que influencia o conceito e o exercício da consciência pessoal;

d) a relativização dos valores e princípios que afectam a vida das pessoas e da sociedade;

Quanto à "mediatização globalizada", terá os seus defeitos, mas sempre é melhor que estarmos "orgulhosamente sós" nos nossos princípios e valores. Não quero dizer com isto que tenhamos todos de pensar da mesma forma, mas saber que o povo português é permeável a novas formas de analisar e julgar as suas realidades parece-me globalmente positivo.

Quantos às lacunas da inteligência e às fragilidades do sistema educativo, parece que estamos de acordo, pelo menos nas palavras. De facto, nem a cultura nem o sistema educativo portugueses têm sido propícios à reflexão crítica. Para tal, basta reportarmo-nos às grandes polémicas portuguesas para concluirmos que sempre tivemos uma forma de discutir primária e caceteira.

Por outro lado, e por incrível que pareça, em pleno século XXI, as jovens portuguesas terminam a escolaridade obrigatória com 15 anos de idade, sem que os Ministérios da Educação e da Saúde consigam atinar num protocolo com vista a proporcionar a todas as jovens uma consulta de saúde reprodutiva e sexual.
Convenhamos que aqui, a tendência expressa da Igreja institucional foi a de remeter esta educação para o seio familiar, como forma de exercício da consciência individual; logo, não me parece coerente que venha agora assacar responsabilidades ao sistema educativo.

Mais ainda, se a Igreja nunca enfrentou o problema da educação sexual dos jovens como um problema colectivo, como é que agora critica o "individualismo no uso da liberdade" e a consequente relativização dos valores?

Jesus, na sua sabedoria, invectivou e desarmou escribas e fariseus, ordenando-lhes que atirassem a primeira pedra se livres de pecado e perdoou sem hesitar. Foi por isso que votei SIM. Confesso que não me parece que esta nota episcopal prima pela coerência. Confesso também que o apelo à objecção de consciência dos profissionais de saúde me parece, acima de tudo, uma forma de mau perder ressaibiado. O que não quer dizer que reserve para mim toda a coerência do mundo.
À sombra das árvores, associo mais uma forma de lenitivo para o calor e o cansaço da alma e do corpo do que propriamente o fruto do pecado.
Meus filhos, a vossa benção para esta mãe incoerente e pecadora.


A complexidade no Colóquio da AFIRSE (2007)

O Grupo das tecnologias do Colóquio da AFIRSE ficou na sala 6 da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação, na tarde de quinta-feira, dia 15 de Fevereiro. No nosso ateliê estavam previstas seis comunicações, mas só apareceram quatro comunicantes: uma colega da ESE de Santarém (ou seria de Leiria?), um colega de História, um estudante de doutoramento e eu própria.
Uma questão complexa: cada um de nós falou das suas coisas mas, no fim, não se conseguiu achar um fio comum, uma complementaridade, um entrelaçamento, capaz de dar sentido a um qualquer denominador comum dos nossos trabalhos, das nossas investigações e das nossas reflexões.
A complexidade está associada ao pensamento dialógico, o que implica modificar o nosso modelo de conversação, que, por sua vez, implica uma nova ética dialogal. Ora, para saber conversar é preciso saber ser livre, é preciso não ter medo de fazer novas perguntas, é preciso que as nossas perguntas sejam autênticas e que se afastem do padrão de, quanto mais embaraçosas para o nosso interlocutor, melhor, perguntas que nos levem a novas aprendizagens e a partilhar o que aprendemos. Nada disto se passou.
A minha questão foi simplesmente esta: como articulamos o modelo do pensamento complexo, em ambientes de aprendizagem colaborativa, com aprendizagens bem estruturadas, que desenvolvam nos alunos a capacidade de pensar de forma complexa?
Que o conhecimento ficava lá, na comunidade, retorquia um dos interlocutores. Mas será mesmo o conhecimento que lá fica? Não se tratará, antes, de mera informação avulsa, fraccionária, desestruturada?
Pois foi exactamente isso que me ficou daquele ateliê: informação avulsa, não estruturada e desconexa, uma verdadeira mitificação, ou melhor, uma caricatura do pensamento complexo.
O que Morin afirmou é que preciso reagrupar os saberes para buscar a compreensão do universo, articular a diversidade, compreender a "nossa comunidade de destinos", tecer a heterogeneidade. Isto implica a capacidade de partilhar significados geradores de coerência e de coesão. Para tal, seria necessário que cada um de nós fosse capaz de colocar as suas teses em suspenso, de saber ouvir, de saber criar um espaço aberto para a voz do outro. O que ali se passou, de facto, foi um monólogo acompanhado.

sábado, fevereiro 10, 2007


Incompreendidos e sós



Hans Asperger, psiquiatra austríaco, descreveu pela primeira vez um grupo de jovens, predominantemente rapazes, emocionalmente vulneráveis, habitualmente afectados por stresse e fadiga, com uma memória singular para factos e números e uma inteligência dentro ou acima da média, cuja obsessão por um tema específico pode levá-los a grandes descobertas na vida adulta.
O Síndrome de Asperger é uma perturbação neurobiológica do espectro do autismo, cujo diagnóstico é já possível nos primeiros três anos de vida, permitindo assim uma intervenção precoce. Os indivíduos com este síndrome são geralmente considerados estranhos pelos seus pares, uma vez que são desajeitados, obsessivos, desprovidos de senso comum e de flexibilidade para lidarem com a mudança.
Apesar de alguns traços comuns, cada jovem com síndrome de Asperger tem a sua personalidade e a tipicidade dos sintomas manifesta-se de forma única, pelo que a abordagem educacional, embora possa ser guiada por um conjunto de estratégias gerais, tem de se adaptar às características individuais.
Em traços gerais, as pessoas com síndrome de Asperger têm facetas específicas, em cinco grandes áreas da sua vida pessoal e social: 1) a linguagem, caracterizada por uma prosódia monótona, um vocabulário formal e uma compreensão fraca da comunicação paralinguística; 2) a sensorialidade, habitualmente marcada por uma hipersensiblidade a sons e cheiros, por baixa sensibilidade a estímulos tácteis e fraca coordenação motora; 3) as funções cognitivas, caracterizadas por uma interpretação literal e um pensamento concreto, que condiciona a compreensão de simbolismos e metáforas e principalmente 4) um comportamento social marcado por uma fraca interacção com os pares e um défice de percepção dos códigos sociais.
Como é frequente que estes jovens se recusem a aprender fora do seu limitado campo de interesse e a sua atenção e concentração se guiam por estímulos internos, dando ao adulto a sensação de que se detêm em aspectos irrelevantes, a abordagem educativa tem de ser simultaneamente criativa e muito estruturada. Assim, haverá necessidade de accionar um conjunto de estratégias e soluções educativas, tais como definir o tempo das sessões de trabalho e alternar o ensino em classe com o ensino individualizado, para obviar à lentidão motivada pela fraca concentração; recorrer a programas estruturados de aprendizagem de regras sociais e a frequentes feedbacks e redirecionamentos de atenção, a adaptações na disciplina de educação física, no caso de alterações acentuadas da motricidade grossa, privilegiando um currículo de saúde e forma física, em vez dos desportos competitivos, em que é o jovem com SA é frequentemente rejeitado pelos pares, pela sua fraca coordenação motora, e ainda programas de treino da motricidade fina.
É igualmente importante que o jovem tenha de seguir regras específicas, como por exemplo, só falar do seu assunto especial em determinadas condições, mas, em simultâneo, permitir-lhe explorar esse interesse, enquadrando-o no seu projecto educativo, uma vez que tal lhe dá conforto, segurança e motivação.
Um companheiro compreensivo que esteja junto dele, pode lembrá-lo de voltar às suas tarefas e a prestar atenção, quando se distrai, assim como a brincadeira supervisionada com uma ou duas outras crianças cria oportunidades de praticar as suas competências sociais.
Tal como todos nós, mas de forma muito especial, os jovens com síndrome de Asperger beneficiam de um reforço positivo, direccionado para o comportamento desejado, o que lhes proporcionará um aumento da sua auto-estima, sentindo-se mais produtivos e competentes.

domingo, fevereiro 04, 2007

Cold Mountain 3, 1988-91, óleo e linho, Brice Marden, Carnegie Museum of Art
Ministério da Educação

O Decreto-Lei Nº 6/2001 de 18 de Janeiro estabelece os princípios orientadores da organização e da gestão curricular do ensino básico, bem como da avaliação das aprendizagens e do processo de desenvolvimento do currículo nacional e consagra as principais orientações e disposições relativas à avaliação das aprendizagens no ensino básico, com as alterações produzidas pelo decreto-lei nº. 209/2002, de 17 de Outubro, remetendo o Decreto-lei 6/2001 para despacho do Ministro da Educação a aprovação de medidas de desenvolvimento das referidas disposições. Por seu turno, o despacho normativo nº. 1/2005 de 5 de Janeiro de 2005 concretiza essa determinação e substitui o despacho normativo nº. 30/2001, de 19 de Julho, alterado pelo Despacho nº. 5020/2002 de 6 de Março.
Por sua vez, o despacho normativo 1/2005 de 5 de Janeiro de 2005 é regulado pelo pelo Despacho Normativo nº 50/2005 de 9 de Novembro, “no que concerne ao carácter formativo da avaliação, de modo a enquadrar a retenção como uma medida pedagógica de última instância na lógica de ciclo e de nível de ensino.” (sic, introdução) e alterado pelo despacho nº. 18/2006 de 23 de Fevereiro de 2006. A declaração de rectificação nº. 25/2006 de 21 de Abril de 2006 rectifica o despacho normativo de 18/2006, que altera o Despacho Normativo n.º 1/2005, de 5 de Janeiro (estabelece os princípios e os procedimentos a observar na avaliação das aprendizagens e competências dos alunos dos três ciclos do ensino básico), publicado em 14 de Março de 2006Em suma, para saber quais as leis que regem a avaliação, o enquadramento, o âmbito, as finalidades, o objecto, os princípios, os intervenientes, os procedimentos, o processo de avaliação interna e externa, designadamente quanto aos seus critérios e tipologia, efeitos, revisão e e condições especiais, qualquer professor ou pai tem de ler oito documentos legais publicados entre 2001 e 2006: dois decretos-lei, quatro despachos normativos e uma declaração de rectificação.
O conceito de sobrecarga cognitiva desenvolvido por Sweller (1988) baseia-se nas investigações de Miller, 1956; Miller considerou que a memória de trabalho está limitada a sete unidades e Sweller descobriu que a aprendizagem requer uma ligação às estruturas esquemáticas da memória de longo prazo e estabelece que a aprendizagem óptima ocorre quando a sobrecarga da memória de trabalho é mínima, de forma a facilitar as alterações na memória de longo prazo.
Em suma, seria francamente mais claro, legível, compreensível por todos que, quando um decreto lei é sujeito a qualquer alteração seja liminarmente revogado e que a regulamentação seja feita por um despacho normativo que, por sua vez, é revogado e substituído por um novo despacho normativo, se o primeiro estiver incompleto ou mal redigido, como aliás se verifica na maioria dos casos. Isto faz algum sentido?

A educação de Rafael

Rafael, cinco anos inteligentes e vivazes de palavras muito bem pronunciadas e um vocabulário rico e rigoroso que reflecte a sua imensa curiosidade pela Geologia e pela Tecnologia e uma enorme vontade de aprender.
Rafael vive em Aldeia de Sul, no Concelho de S. Pedro do Sul, uma aldeia recôndita da Beira interior, em plena Serra de S. Macário, onde o raiar do Sol tem fama de mais bonito (embora o ocaso possa chegar mais cedo) e as cores mais deslumbrantemente fortes.
Os meninos de Aldeia de Sul, de Leirados, do Fujaco, do Ervilhal e de outras aldeias circunvizinhas tiveram de se deslocar para Sul, sede de freguesia para frequentarem o primeiro ciclo.
Os pais de Rafael consideraram que o esforço exigido ao rebento seria precocemente violento e optaram por o deixar aos cuidados da avó e no seio da família por mais um ano escolar.
Rafael-menino-Jesus da sua família, como todos os outros, prolongará assim até mais tarde a sua escolaridade previsivelmente longa e entretanto percorrerá pela mão da avó os caminhos alcantilados de frio e de gelo que unem aldeias e estas às terras que produzem os legumes da sopinha beirã, deixará para mais tarde as madrugadas e os regressos tardios ao seio da família, gozará por mais tempo o regaço inexcedível da avó Madalena e as camisolas quentes que ela lhe tece. Entretanto, avó e pais ocupar-se-ão de lhe ir proporcionando fontes de conhecimento que amortizarão a espera e lhe satisfarão a curiosidade imensa.
Para outros meninos da idade de Rafael a escola será ainda mais dura, sendo natural esperar que os seus resultados escolares não sejam exactamente idênticos aos dos meninos que os pais deixam à porta das escolas dos meios urbanos.
Assim, a aplicação do critério dos resultados nas provas de aferição, a badalada média nacional, denominador comum de um país de assimetrias, em termos de acessibilidades, riqueza e recursos um plano de reordenamento escolar que visa extinguir 900 escolas de 1º. Ciclo é injusta para alunos e professores e imoral.

sábado, fevereiro 03, 2007

É para isto que servem as provas de aferição?
Os telhados da Aldeia da Pena

Maria, uns dez anos franzinos acabados de fazer e muita vontade de aprender. Maria vem de Leirados, uma aldeia recôndita da Beira interior para Aldeia de Sul. Daí segue para Sul, sede de freguesia e daí ainda, para S. Pedro do Sul, onde frequenta o 5º. Ano de escolaridade, em pleno maciço montanhoso do “Monte Magaio”, no qual, diz-se, o raiar do Sol é mais bonito e as cores mais deslumbrantemente fortes, mas o ocaso chega mais cedo.
Todos os dias, Maria percorre assim quase vinte quilómetros de caminhos íngremes e estradas de curvas e gelo. Sim, porque apesar do esforço da autarquia em proporcionar transporte a estes meninos, muitos deles têm a viagem repartida em três etapas e muito frio entre um transporte e outro. Já de noite, ao chegar à entrada da sua aldeia, as perninhas de Maria ganham uma nova energia e gana de voltar a casa que deixou ainda sem que a luz do Sol lhe chegasse à cara e às mãos.
Quando se educa uma mulher, educa-se uma aldeia, é certo; mas uma equipa ministerial tem de utilizar outros instrumentos de decisão para além de uma calculadora, uma régua e um esquadro sobre o rectângulo de assimetrias que somos: de Maria, é de esperar que os resultados escolares não sejam exactamente idênticos aos dos meninos que os pais deixam à porta das escolas dos meios urbanos, pelo que este critério dos resultados não pode ser aplicado de chapa a um plano de reordenamento escolar.
Quando dizemos que Portugal é um país de assimetrias, não estamos a referir-nos ao quadrilátero bem proporcionado que formamos, ideal para a construção de uma jangada que, Atlântico adentro, arraste consigo as pérolas-ilhas que constituem os nossos arquipélagos; estamos a referir-nos a contrastes profundos nos indicadores de desenvolvimento, na distribuição da riqueza, nas oportunidades e recursos que, por sua vez, se reflectem na assimetria dos resultados da Educação.
Os resultados das provas de aferição, quando conhecidos, e dos exames nacionais retratam um país desequilibrado, com Lisboa, Porto, Coimbra e Braga a liderarem e as regiões deprimidas do interior a manifestarem, também no sector da Educação, todas as suas fragilidades estruturais multifactoriais, com uma política agrícola altamente penalizadora à cabeça.
A filosofia e os objectivos iniciais das provas de aferição constituíam-nas como instrumentos de avaliação do sistema educativo. Logicamente, os seus resultados deveriam ser devolvidos aos agrupamentos de Escolas, que sobre eles reflectiriam e poriam em marcha, num procedimento de reflexão colectiva, os processos de melhoria que entendessem necessários e urgentes.
Todavia, no entender da actual equipa do Ministério da Educação, às provas de aferição cabem novas funções: sinalizar as escolas marcadas para morrer, legitimar a dispensa de cerca de 900 professores do primeiro ciclo e de reencaminhar os meninos que obtiveram uma média inferior à média nacional e que frequentem escolas com menos de vinte alunos, para outras escolas, certamente mais distantes das suas terras e famílias e eventualmente (apenas eventualmente) melhor equipadas em recursos humanos e materiais.
Temos assim um pequeno país dividido ao meio – o litoral e o interior – o primeiro para viver, trabalhar, produzir, evoluir, e o segundo – eventualmente, apenas eventualmente – para as férias de quem possa dar-se a esse luxo. Ou para vender, a preços módicos, aos europeus fanáticos de paraísos perdidos.
Texto publicado no Público de hoje, página 8